Nesta terra ainda se brinca
Euclides Redin
Brincadeira e o jogo apesar das dificuldades e da massificação, ainda estão presentes. São naturalmente importantes para o desenvolvimento da pessoa. É preciso garanti-lhes tempo, espaço e condições. Nossas crianças teimosamente conquistam estas condições; nossos adultos precisam reconquistar este espaço perdido pelas exigências da vida para garantir seu equilíbrio ou evitar a fuga para compensações e/ou terapias.
Felizmente nossas crianças ainda brincam, apesar das dificuldades de tempo, de espaço, de objetos e da massificação da indústria do brinquedo e do lazer.
Em qualquer esquina, em qualquer calçada, em qualquer resto de espaço urbano e/ou rural há crianças se envolvendo em atividades lúdicas, as vezes com apelo a milagres da imaginação a qual consegue ultrapassar os limites do cotidiano e os desafios da sobrevivência.
Isto, indiscutivelmente, é sinal de psiquismos sadios e de energias indomáveis da vida. Mesmo nas situações mais trágicas aparecem manifestações gratuítas de ações lúdicas que fazem recordar a frase magistral de um psicólogo, amigo meu, que dizia: "Quem for capaz de dar risada de sua própria desgraça é certamente um homem equilibrado".
Mas, por que o brinquedo é tão importante?
A história do homem está intimamente ligada à sua capacidade de agir sobre o mundo e de atribuir significado ao mundo. A ação, a representação e a significação se constroem gradativamente em níveis cada vez mais complexos, mas conjuntamente.
Na criança, a ação, a interação com o meio, com os objetos e com os outros se faz graças ao movimento, à atividade que na idade infantil toma forma de brincadeiras. Num primeiro momento, o ser infantil age, se movimenta, tateia, entra em contato com o mundo, via sentidos, pelo impulso da vida que se apóia em dois eixos inseparáveis: o interno e o externo. A par do movimento vai se formando, de forma precária, a linguagem. Tanto esse processo é conjunto que a criança já não age sem, concomitantemente, emitir sinais de linguagem, mesmo que sejam indistintos e incompreensíveis para os outros. Mesmo porque, neste momento, a linguagem não visa a comunicação; mas a organização da ação. Aos poucos, e muito vagarosamente, a linguagem interioriza a ação e pode preceder a ação.
Na existência infantil, cercada de dificuldades e limitações, a ação, sua expressão e seu projeto vão de encontro à opacidade do real. Pelo fato de, ainda, a criança não ter maiores compromissos com o real, ela possui a capacidade de desrespeitá-lo e ultrapassá-lo através da imaginação. Ela pode dar-se o direito de sonhar todo um mundo fantástico que tem pouco a ver com o seu cotidiano imediato sem por isto ser responsabilizada - e neste mundo ela divaga, constrói e destrói castelos e heróis e ela mesma pode se erigir o grande herói, fada ou monstro.
A nós adultos, cheios de preocupações e responsabilidades, pode isto tudo parecer passatempo ou perda de tempo - especialmente quando os homens do norte nos disseram "tempo é dinheiro".
Para a psicologia psicogenética, o pensamento abstrato é construído via ação, interação, movimento, que inicia com aspectos simplesmente sensório-motores, depois representações e simbolizações do concreto, depois operações concretas; nunca sem passar por estas etapas, mesmo que tardiamente.
Em todas essas etapas, a maneira não formal de organização é, em todas as crianças, a brincadeira.
Na brincadeira, a criança já opera; isto é, age numa esfera cognitiva porque sua contribuição sobre o real parte tanto do seu interior quanto das propriedades dos objetos. Na brincadeira, o pensamento, as elaborações psíquicas têm alguma relação com o real; mas o ultrapassam, criando dimensões, imagens, regras, significados, que passam a predominar sobre o real. Este processo elabora as estruturas fundamentais do pensamento abstrato.
A criação de um situação imaginária que enriquece o real próximo, é a primeira emancipação da criança em relação às restrições situacionais.
Pela atividade, pela imaginação, pela fantasia, pela interação com os outros, a criança passa a viver situações novas que solicitam elaborações psicológicas novas, gradativamente mais complexas. Isto explica também a mudança das brincadeiras, que de início, estão mais ligadas ao imediato e à imitação, até chegar às brincadeiras de regras, as quais chegam a níveis bastante rígidos que disciplinam a aquisição dos desejos, embora fictícios; mas desafiam e introduzem a criança numa zona de "desenvolvimento potencial" altamente construtivo.
Há outro aspecto importante na brincadeira para o desenvolvimento infantil: a conquista da autonomia. Podendo a criança criar seu mundo fictício, estabelecer suas regras, projetar sua ação, ela está livre dos autoritarismos da situação real, fazendo um exercício de tomada de decisões que, posteriormente, comporão sua identidade política como cidadão.
A brincadeira, assim considerada, vale por si, por sua gratuidade, por sua "inutilidade". Qualquer adjetivação, por exemplo, brinquedos educativos, ou de gênero, ou de violência, ou de competição, é desnecessária e pode ser uma armadilha, atribuindo-lhe uma importância ou um condicionamento desnecessários.
Os brinquedos educativos, introduzidos rigorosamente na escola por Maria Montessori, podem ser proveitosos por seu caráter pedagógico, mas perdem , em parte, seu caráter lúdico e sua dimensão maior de criação e imaginação. O mesmo pode se dizer dos brinquedos eletrônicos, com dois agravantes: o comprometimento integral do jogador às normas e regras preestabelecidas no programa, as quais a criança deve previamente assumir; e a relação fria com a "máquina": os outros, os objetos do mundo, a cultura e a existência humana apenas são elaborados na sua forma estereotipada e "desistorizada". Tem como vantagem desenvolver a agilidade intelectual de perceber os esquemas do programa e adiantar-se à sua lógica e desenvolver a habilidade de manipular botões, teclas, controles, mais ou menos mecânicos. Não há espaços para diálogos, questionamentos e reflexões; especialmente, é incompatível com este tipo de jogo, a criação.
Para ser educativa, a brincadeira, deve antes de tudo ser jogo; deve ser uma atividade que traz a marca e a expressão natural do ser e do eu da criança e, portanto, que a criança tenha garantido o tempo e condições de jogo como um direito.
Para o adulto que está em contato com a criança, é fundamental que recupere o lúdico em sua vida.
As brincadeiras e os jogos assim considerados, trazem no seu processo, a história da cultura de uma coletividade e, por isto, tanto são importantes para mediar a construção da identidade de um grupo humano, quanto são sinais indicativos das características específicas deste grupo. Os grupos porém, não são homogêneos. Em cada grupo humano há jogos e jogos, atividades e atividades, com valorações pessoais e históricas significativas e características.
Carlos Drummond de Andrade diz de forma poética esta contradição que indica situações, interesses, valores e culturas específicas como aparece neste poema:
OS GRANDES
E falam de negócio
De escrituras demandas hipotecas
de apólices federais
de vacas paridas
de éguas barganhadas
de café tipo 4 e tipo 7
Incessantemente falam de negócio.
Contos, contos, contos de réis saem das bocas
circulam pela sala em revoada,
forram as paredes, turvam o céu claro
perturbando meu brinquedo de pedrinhas
que vale muito mais.
Carlos Drummond de Andrade
Mesmo com dificuldades vale a pena valorizar o lúdico presente em nossas crianças e reconquistar o lúdico perdido ou compensado de nossos educadores. Conseguir brincar é aproveitar uma situação privilegiada para o desenvolvimento e um sinal de equilíbrio.
E então, por que você não curte a brincadeira das crianças e não vai você também brincar?
Disponível em: <http://euclidesredin.blogspot.com.br/2007/08/nesta-terra-ainda-se-brinca.html> Acesso em: 28 mai.2018